Você tem fé ou você confia em si mesmo?

O que Toryo Ito discute me faz lembrar de uma experiência. Uma vez estava num atendimento com uma psicanalista e disse o quanto estava desesperado por causa de uma nota quase zero numa prova. Isso é bem comum, inclusive. Estou contando isto porque ela me perguntou "Por quê você está tão desesperado e preocupado se você me disse que já sabia que não tinha estudado para aquela prova?" (Eu não tinha mesmo estudado). Vê que a pergunta levanta uma questão interessante? A conversa prosseguiu e ela fez o seguinte comentário: "Parece que você está acreditando que um milagre vai mudar as coisas". Vê a relação entre fé e desespero nessa breve história aqui?
Toryo Ito explica que a fé em religiões não-budistas tende a por Deus acima de tudo e isso significa acreditar sem saber ou sem ver. Quando outras religiões veneram deuses há uma expectativa, vamos chamar de "fé pura", numa salvação ou redenção da forma que o crente acredita que há. Por sua vez, o budismo é melhor entendido com a palavra confiança no lugar da fé. Porque a crença não é numa divindade ou força sobrenatural, mas em si mesmo. É sobre auto-iluminação e geralmente é isso que a postura da meditação significa. Quantas respostas há para a pergunta "O que é fé?" ou "O que é Deus?". Inúmeras, para dizer o mínimo. Qual delas é a verdade absoluta? Isso fica para você descobrir, o que nos leva de volta ao caminho de Buda.
No meu próprio wiki eu disse que os estudantes de cálculo frequentemente fazem um salto de fé. Porque, incapazes de entender a teoria, calculam alguma coisa sem saber se está certo ou errado. Apesar de acreditarem que pode ser a resposta certa. Porque acreditar na sorte é melhor do que não acreditar em nada ou nunca chutar. Voltando à minha prova de antes, agora que se passaram alguns anos desde então, eu vejo claramente que estava numa expectativa de que por pura sorte algo faria com aquela nota não me levasse a um fracasso naquele semestre. Quem sabe eu estivesse inconscientemente esperando que as notas da classe toda fossem tão baixas que o professor fosse dar uma segunda chance or algo parecido. Hoje vejo como se sentir assim deve ser muito muito comum. Podemos extrapolar a mesma ideia para procurar um emprego, querer que um criminoso seja capturado, torcer para o seu time de futebol favorito, etc. Vê? É sobre ter fé! Você consegue ver como é comum a pena se relacionar com a fé e vice-versa? Todo mundo deve conhecer a frase "A esperança é a última que morre". Sim, abandonar toda a esperança é ruim na maioria dos casos. Porém, o que a esperança sozinha poderia fazer pela minha nota baixa? Nada.
Desde quando a fé move montanhas numa referência ao cristianismo? Alerta, não estou comparando o cristianismo com o budismo. Se eu pensar em todo filme, série e desenho animado que assisti, percebo que tinha mais ou menos a mesma interpretação de fé e salvação presente nos mesmos. As pessoas rezam e alguma força sobrenatural cai do céu para salvá-las. No final da série Sobrenatural, o novo Deus, Jack, responde ao questionamento de Dean Winchester a respeito das pessoas do planeta Terra quererem desesperadamente respostas: "As respostas estão dentro de cada pessoa. Quem sabe não hoje, mas um dia". Vê? Há uma diferença sutil entre esperar que um milagre irá fazer as coisas acontecerem e você agir para que os ditos "milagres" aconteçam. Eu acho que frequentemente temos uma interpretação equivocada do cristianismo e temos uma imagem errada da fé.
Para dar um exemplo prático de como a religião pode ter um efeito negativo: No Brasil temos o ENEM e ele cobre todas as matérias da escola. Matemática, física, química, biologia, história, português, etc. Todos os anos alguns chegam atrasados e perdem a prova. Em outros países também deve acontecer isso. Teve um ano que uma menina chegou atrasada. Sabe qual o motivo do atraso? Ela foi com a família rezar numa igreja e perdeu a hora. No meu outro artigo eu disse que tentei o vestibular várias vezes. Não me lembro e nem tenho como contar, mas tenho certeza que já pensei "Será que dessa vez vai dar certo porque a concorrência desse ano é menor?" ou algo do tipo. Não estou dizendo para desconsiderar a fé, mas às vezes o que pensamos que é a fé está mais para uma força sobrenatural do que para ações práticas.
Bernardo (Bernardinho) Rezende e muitos outros atletas e técnicos dizem mais ou menos a mesma coisa a respeito de trabalho duro e alcançar a perfeição ou perto disso. Se eu tirar uma nota baixa numa prova. Quem vai me resgatar ou ajudar? Deus? Jesus? Se eu chegar numa final olímpica de um esporte. Será que a comida ou um vírus vai derrubar os meus concorrentes e aí eu ganho por causa disso? Não é impossível, mas pensar desse jeito é ignorar o trabalho duro e desprezar o trabalho duro dos outros que chegaram na mesma final que você. O fator aleatório existe no universo, mas não é uma divindade, uma força ou uma entidade onisciente. Eu gostaria de continuar nessa discussão que mistura filosofia e matemática, mas não tenho conhecimento para tal. Já vi pessoas, incluindo eu mesmo, pondo a culpa de infortúnios no fator aleatório e no azar. Não tenho muito a dizer, mas acho que o estoicismo é uma resposta para isto.
O que Toryo Ito diz sobre desacelerar me lembra do que a Marsha Linehan diz sobre tratar pacientes borderline. Eles não toleram ficarem parados, sentar e não fazer nada além de fechar os olhos e meditar. Se você já viu a descrição da personalidade limítrofe sabe que essas pessoas frequentemente buscam emoções fortes ou coisas que as façam se sentirem vivas. Até psicopatas fazem isso. Notou o que destaquei? Essas pessoas frequentemente conseguem se focar numa atividade que as façam sentir emoções fortes ou sentirem-se vivas. A meditação e calmaria também se focam na vida de uma pessoa. Porém, da direção completamente contrária comparado com se focar numa atividade ou ação. A Marsha teve esse insight e conseguiu traduzir os ensinamentos do budismo para fazer com que os pacientes limítrofes focassem as suas atenções e energias em si próprios. Apesar de serem pessoas que não toleram a meditação, elas conseguem trabalhar e se focar num caminho de cura. A chave é repensar como percebemos o tempo. Nossas mentes são capazes de transitar para o futuro e o passado e frequentemente os transtornos mentais aparecem quando a mente fica presa num "tempo psicológico" que é desligado do presente. Para citar uma cena famosa do filme "Um sonho de liberdade" (Portugal: Os condenados de Shawshank), quando Andy Dufresne finalmente escapa da prisão: "Diretor, o senhor estava certo. A salvação vem de dentro".
Comentário aqui: a combinação de transtornos mentais, fanatismo e religião é um tópico bem grande que eu poderia entrar, mas é muita coisa e fora do meu alcance. Se você pesquisar sobre o narcisismo como eu fiz vai encontrar pessoas comentando como os líderes de alguns grupos religiosos tem traços narcisistas ou até mesmo psicopáticos. Não é muito difícil entender a conexão. Os ensinamentos de qualquer religião podem ser mal interpretados e distorcidos porque existem diferentes pontos de vista aceitos, incluindo aí os extremistas.
Eu assisti muitos vídeos sobre narcisismo e o transtorno de personalidade narcisista. A Dr. Ramani Durvasula diz que se um narcisista escolher um caminho de cura é uma escolha dele(a). Não escolheram porque alguém disse para fazerem. Eles(as) precisam resolver os seus conflitos internos, porque ninguém mais o fará por eles(as). Isto é mais ou menos a mesma conclusão no meu próprio artigo aqui. Se você procurar pela descrição de todos os transtornos de personalidade do grupo B. Todos compartilham do mesmo problema de um vazio interior. Todos tem o mesmo sintoma de sofrerem de variações de humor muito rápidas, porque as emoções que eles tem são rasas. Rasas, mas ao mesmo tempo percebidas com grande intensidade por dentro. Se você prestou atenção ao que o Toryo Ito disse sobre o jardim e tomar o tempo para desfrutá-lo em todas as suas nuances. Quando vi o vídeo pensei imediatamente no que a Ramani disse sobre como os narcisistas tem emoções rasas.
Coincidentemente eu assisti um vídeo do Nameless Narcissist com o título "Como fazer um narcisista feliz". Um homem simples diagnosticado como narcisista compartilhando as suas experiências de vida. No vídeo ele conta como achava girassóis fascinantes. Pode um narcisista se importar com algo tão pequeno quanto uma pequena flor? O "Nameless narcisist" é um exemplo e podem haver outros pelo mundo. Atenção, não o conheço pessoalmente mas achei pertinente citá-lo aqui. Eu apenas tenho esta crença de que nenhuma pessoa nasce predestinada a seguir um caminho ou outro. A única exceção que vou fazer vem por causa do que aprendi do ponto de vista da psiquiatria forense. Alguns caminhos são, infelizmente, ditos irreversíveis e para entender melhor isso eu precisaria adentrar no ramo da criminologia. Uma vez que a pessoa esteja seguindo um desses raros e irreversíveis caminhos não há mais volta. (Atenção: Não estou discutindo se a pessoa já nasceu nesse caminho irreversível). Atualmente a minha postura é de que todos temos escolhas, mas quando o assunto são crimes e se a pessoa pode escolher por mudar esse caminho. Esta já é uma questão que não posso responder porque não tenho experiência com esses casos específicos.
Acho que a conclusão deste artigo seria no sentido de uma pergunta: Você tem fé ou você confia em si mesmo? Thiago Klafke fez um vídeo, que eu legendei, sobre entrar na indústria de jogos e artes para jogos e disse que você precisa encontrar o seu próprio caminho e voz. Como eu relacionaria transtornos de personalidade, psicologia e religião? Com o que aprendi nos últimos anos diria que todos os transtornos mentais são muito influenciados por um fluxo de informações e energia do meio para você e vice-versa. Encontrar um equilíbrio e paz neste fluxo bidirecional é a chave para encontrar sentido na sua vida.
Nota final: A fé e a confiança são mutuamente excludentes? Não pesquisei sobre isso mas eu não diria que aderir a um significa descartar o outro. Esta é uma ótima pergunta sem uma resposta única.
PS: O que o vídeo sobre os cidadãos de Kyoto faz aqui neste artigo? Eu fiquei meio incrédulo com o fato do templo budista ensinar crenças e valores que não condizem com as críticas feitas à população de Kyoto em geral. Eu pensei "Será que os aristocratas de Kyoto no século 19 eram narcisistas?" Foi o que pensei depois do vídeo do Shogo. Compare o narcisismo e o budismo. São como água e óleo. Impossíveis de misturar bem.
Referências (inglês)
- A Japanese monk shares his best life advice - Takashii from Japan
- DBT Mindfullness skills - Marsha Linehan
- The 2 surprising reasons why Japan hates Kyoto - Let's ask Shogo
- How to make a narcissist happy - Jacob Danford Skidmore
- Getting my dream job in the games industry was... Hard! - Thiago Klafke
- Supernatural's scene from "Inherit the Earth", when Jack becomes the new God (Pode parecer estranho esta fonte aqui, mas é como eu disse. Eu descobri que muitas das crenças que tinha vieram da TV e a TV é muito boa em propagar crenças, tantos as boas quanto as más)
- Shawshank's Redemption scene where the Warden finds the message left by Andy
- Surviving Narcissim - Les Carter
Referências (português)
Eu não lembro de todos os vídeos, mas dentre todas as contes incluem-se: Pedro Calabrez, Clóvis de Barros Filho, Bernardo (Bernardinho) Rezende, Alan Mocellim, Dr. Guido Palomba, dentre outras.