Realístico vs. Fantasia
Isto é algo que tive que aprender e entender melhor com o tempo. Alguns estudantes de arquitetura postam em fóruns mostrando uma dificuldade de pensar num nível, mesmo que já tenham o diploma de arquitetura. Seria natural pensar que pessoas com uma bagagem de arquitetura teriam muito menos dificuldades em criar um nível, não? Esta é uma falsa premissa que entendi com o tempo. Pense numa casa. Quais as preocupações com uma casa? Eu não tenho conhecimentos e estudos sobre arquitetura ou artes, então cuidado com o que vou dizer. A primeira preocupação de uma construção de uma casa é quem vai morar ali. A casa é feita para durar muito tempo e uma ou mais pessoas viverão lá por muito tempo. Uma construção real tem preocupações como custo, espaço e localização. Além de propriedades mais abstratas e subjetivas como conforto, sonhos, sentimentos e emoções. O ambiente de um jogo por sua vez não existe no nosso mundo. Ele existe num ambiente virtual onde algumas regras não se aplicam. Tais como parâmetros de engenharia reais que todo lugar tem. Regras e legislação que qualquer lugar tem.
Eu lembro que o Max Payne foi um dos primeiros jogos que me fez perceber que o cenário de um jogo que se baseia no mundo real não precisam obedecer à lógica do nosso mundo. Digamos que queremos uma casa com dois quartos, uma cozinha, uma sala de estar, dois banheiros, um porão, uma porta de entrada, uma porta nos fundos e quem sabe uma adega para guardar vinhos. No mundo real provavelmente um quarto teria apenas uma porta para entrar e sair. Porém, num jogo podemos ter portas secretas por exemplo. As paredes e portas não precisam ser dispostas da mesma maneira que faríamos no mundo real. A jogabilidade vem primeiro. Se estamos construindo uma casa para um jogo de tiro em primeira pessoa. A arquitetura pode obedecer à algumas ou quase todas as regras do nosso mundo, mas precisa servir ao jogo. Se o jogo tem o próprio mundo, suas próprias regras e leis e elas pode ou não sere exatamente as mesmas leis e regras do nosso mundo. No caso de um jogo de tiro em terceira pessoa somos forçados a ter tetos bem mais altos porque senão a câmera não cabe. A escala das coisas num jogo não corresponde à do nosso mundo porque um jogo não é um simulador perfeito da vida real, ou ao menos não acho que um jogo deva ser.
Uma chave é deixar espaço para o jogador imaginar. Não precisamos mostrar tudo que existe dentro de um prédio por exemplo. A escala por si pode não corresponder exatamente à realidade. Max Payne por exemplo. Os prédios passam a sensação e parecem realistas, mas quem os construiu não estava preocupado com cada cano, cabo e todos os andares de um. Com muita frequência um nível representa um ou dois andares de um prédio, enquanto o resto nunca é mostrado ou visitado. Nem mesmo existem dentro do mundo do jogo. Se estivéssemos construindo uma réplica exata de uma construção real teríamos que pensar em parâmetros de vida real, mas dentro de um jogo todos esses parâmetros podem ser pulados. Eu acho que li sobre isso com o Kevin Levine e a J.K. Rowling sobre com deixar espaço para o leitor completar os buracos com a sua própria imaginação. Não sou um escritor e não posso dar conselhos aqui sobre design e quanto deve ficar visível e quanto deve ficar implícito.
Eu gostaria de continuar essa discussão para um lado mais filosófico, como discutir Abstrato vs Concreto. Infelizmente eu não tenho sabedoria para tal e ficaria muito grande para esta página. Um conceito da filosofia é a "verossimilhança", que diz respeito a alguma coisa ser semelhante à verdade. Para um jogo podemos ficar com uma palavra mais fácil, "plausibilidade" ou "crível". Que significam que um jogo apresenta algo que é plausível ou crível de alguma forma. Nossas mentes são capazes de reconhecer formas comuns, cores, objetos, formas humanoides, etc e se fundamentar nessa capacidade é o permite que um nível seja concebido de tal forma que ele pode não ser uma réplica de um lugar real do mundo. Apesar disto, é bastante plausível para que não fiquemos nos perguntando "Como um inimigo está lá se não havia espaço para entrar nem sair?" ou "Está certo por isto aqui e não ali?". Abaixo estou dando exemplos práticos de níveis que misturam a ficção e a realidade, apresentando um ambiente que pode não ser factível no nosso mundo, mas servem aos propósitos do mundo do jogo.
Curiosidade: caso tenha curiosidade pesquise por agnosia. É um tipo bem específico de problema que acontece no cérebro de algumas pessoas que causa uma incapacidade de reconhecer coisas comuns no mundo. Por ex: existem pessoas incapazes de reconhecer rostos de pessoas, o que se chama de prosopagnosia. Eu nunca pesquisei ou estudei a relação entre agnosia e arte, o que indiretamente tem relação com design e artes nos jogos, mas procure pela história da Carlotta. Uma artista que é incapaz de reconhecer rostos, incluindo ela mesma no espelho.
Como eu mencionei a imaginação. Também vale mencionar a afantasia uma incapacidade que algumas pessoas têm de criar imagens mentais. Por ex: se a pessoa tentar fechar os olhos e imaginar um bosque com animais e plantas, ou formas geométricas como na matemática, não consegue. Se isso tem relação com design nos jogos eu não saberia dizer, mas seria uma relação bastante indireta e bem difícil de estabelecer.
Max Payne 3
A última parte acontece num aeroporto. O primeiro combate acontece dentro de uma zona onde as bagagens dos passageiros são scaneadas e organizadas. A esteira de transporte ali, as passarelas suspensas e as muitas bagagens e carrinhos de transporte de bagagens formam um labirinto. No mundo real o lugar seria muito mais claro e limpo do que é no jogo. Em seguida o jogador atravessa uma área de serviço com escritórios e termina num banheiro, que leva a um outro terminal no mesmo aeroporto. Que aeroporto do mundo tem um banheiro com uma porta dos fundos que leva à uma área privativa, altamente vigiada, onde os passageiros nunca poderiam entrar? Isso não existe no mundo real.
Max Payne 2
Nesta parte o jogador investiga um condomínio de luxo. Num prédio de apartamentos do mundo real cada andar teria a mesma área, a menos que a estrutura do prédio acomodasse apartamentos maiores e menores. Quando a estrutura de apartamentos num prédio compartilha a mesma área entre cada apartamento temos uma simetria do primeiro ao último andar. Esperamos que paredes, pilares e cada sala tenham a mesma posição em cada andar. Não é caso em Max Payne 2. O jogador pula por algumas varandas, mas elas não são simétricas no que diz respeito aos andares acima e abaixo. O jogador pode ver que os apartamentos abaixo e acima não têm a mesma varanda. O nível não foi feito com simetria em mente.
Control
Se você pensar "Por quê eu colocaria uma mesa aqui? Por quê os escritórios ficaria aqui e não ali, bem longe do elevador principal? Por quê a sala do diretor está ligada a este corredor e não ao outro?". Essas perguntas fazem mais sentido num prédio do mundo real. Porém, estamos no mundo do Control. Não temos pessoas reais trabalhando ali. Temos jogadores explorando o ambiente. Temos inimigos controlados por I.A. e NPCs que não pensam e não são auto-conscientes ao ponto de sentirem ou discutirem qualquer coisa a respeito daquele mundo.
Jedi Knight 2: Jedi Outcast
Cairn Reactor. De um ponto de vista de mundo real este nível não é o que o interior de uma usina nuclear real seria. Teríamos salas específicas para monitoramento de temperatura e outros dados. Banheiros, depósitos de estoque para resíduos nucleares, etc. Nunca teríamos corredores com lasers mortais atirando em intervalos regulares. Novamente, estamos no mundo do Jedi Knight, que opera com sua própria lógica. Não estamos pensando num prédio de um mundo real, que jamais teria obstáculos como num jogo. Muito menos quebra-cabeças para resolver ou áreas secretas para encontrar. O ambiente passa sensação de perigo como numa usina nuclear real, mas ao mesmo tempo é arquitetado em torno da jogabilidade. Não é uma cópia exata de uma localidade do mundo real.
Como eu faria um nível como este? Acho que um começo é você fazer uma lista de mecânicas, desafios e obstáculos que você gostaria de pôr e tudo de acordo com um tema para o nível. Por ex: pense no Indiana Jones, um nível que seja um templo em ruínas. Os obstáculos ali seriam pedras caindo do teto, chão que abre armadilhas de espinhos, teto esmagador, dardos venenosos saindo de buracos nas paredes, etc. A partir daí pensaria num nível e como os obstáculos estariam dispostos. Porque veja o exemplo que dei do reator nuclear. Se você pegar a planta baixa de uma usina nuclear de verdade e um vídeo de alguém que gravou um documentário dentro de uma usina nuclear. Aquilo não é um jogo! Não vai dar certo querer construir num jogo porque estamos com a intenção de criar um cenário de jogo com obstáculos que só existiriam dentro de um jogo. O que faz sentido é você olhar para a usina nuclear de verdade e pensar em canos soltando vapor quente, piscinas radioativas, eletricidade, etc e daí pegar estes elementos e pensar em como fazer um nível de jogo que tenha estes elementos que acabei de listar. É esta a questão que está por trás de todo o artigo nesta página. Realidade vs. Fantasia.
Halo: Combat Evolved

No final o jogador dirige um veículo dentro de uma espaçonave. O nível foi desenhado para ser uma pista de corrida com obstáculos no caminho, ao mesmo tempo em que ignorou completamente o exterior da mesma nave. Da perspectiva de um designer adulto é ilógico. Porém, da perspectiva dos jogadores da época, era divertido. O que estou tentando dizer é que frequentemente temos escolhas para fazer e, às vezes, preferir a fantasia sobre a realidade é deliberado. Eu não acho que exista uma fronteira exata entre a fantasia e a realidade e o pior que consigo imaginar para mim é ficar preso a um ou outro num sentido religioso. Rejeitando todos os pontos de vista, exceto aquele que estou seguindo.
As regras existem por um motivo, mas não significa que nunca podemos questioná-las.